terça-feira, 20 de julho de 2010

Do jogo de palavras à vitória no debate


Pretendo fazer uma série de "posts" para analisar argumentos defendidos em diversas áreas do conhecimento, iniciando pelo vídeo do W. Craig aqui relacionado. Não há um motivo especial para iniciar com este vídeo e o argumento do debatedor, a não ser o de que quando tive acesso ao vídeo eu não pude deixar de notar o quanto teístas cristãos utilizam-se deste autor como referência para o debate lógico e racional em favor dos argumentos que pretendem defender a existência de “deus”. Sem mais delongas, vamos direto a análise do vídeo e dos argumentos anunciados por William Laine Craig.

Craig pretende dar uma resposta ao paradoxo de Epicuro (341 – 271 a.C.) que supõe a incompatibilidade entre a noção de um “deus” onipotente, onisciente e benevolente e a existência do mal. Segue o paradoxo: “Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos Deus?”.

A princípio, Craig não ataca o problema proposto pelo ouvinte e inicia um tipo de fuga do problema central, a fim de desviar a atenção da falta de resposta, que ficará tácita em sua argumentação, para direcioná-la ao confronto ideológico contra ateus pressuposto no debate. O que já de início quero demonstrar aqui é um fato que venho percebendo, especificamente, em discussões a respeito desse tema e que circulam na internet, a saber, o debate pelo debate. Isso reflete um tipo de erística que em nada deve àquela criticada por Platão e Aristóteles na antiguidade. O que se percebe, em ambos os lados (teístas e ateus), por muitas vezes, é a simples e irrelevante necessidade de direcionar o debate para uma vitória sobre o opositor. Por vezes, até mesmo uma simples refutação é deixada de lado; argumentos são lançados sob o pretexto da estrutura lógica correta (ou da validade do argumento), e a inferência de que a verdade das premissas procede se torna quase que automática. Enfim, isso é tema para um post único. Façamos apenas a análise dos argumentos aqui apresentados por Craig.

Para melhor aproveitamento de seu argumento (e não apenas o direcionamento para o convencimento da platéia), Craig deveria ter iniciado analisando a sentença pressuposta para o paradoxo, qual seja, “se Deus fosse onipotente, onisciente e benevolente, então o mal não poderia continuar existindo”. A oposição manifesta entre a existência de Deus segundo esses atributos e a existência do mal fica explícita no argumento de Epicuro, dadas as premissas do modo como foram postas. Para que haja a coerência entre Deus e o mal (tendo sempre em mente todo o argumento, não repetiremos a cada momento que citarmos o problema), uma daquelas três características deve ser suprimida. O que o paradoxo aponta é justamente a impossibilidade da coexistência de ambos “dadas as premissas como são postas” (para entender melhor essa expressão, recomendo os Pri. An. 24b 20-27, onde Aristóteles aborda a definição de silogismo, mesmo que rapidamente). Se a definição assumida de Deus for aquela estipulada nas premissas, o argumento concluirá a inconsistência dela com a existência do mal. Todo o argumento se colocaria do seguinte modo:

“Se Deus for onipotente e onisciente, então ele sabe da existência de todo o mal e tem poder para acabar com ele, mesmo assim não o faz. Então Ele não é perfeitamente bom (seguindo nosso padrão de definição do que seria benevolente. É claro, somente os teólogos podem “afirmar” o que se passa na cabeça de Deus, eu não sei, mas sei que se há um mal que temos poder para extirpar, nós haveremos de fazê-lo).

Se Deus for onipotente e benvolente, então tem poder para extinguir todo o mal que existe, e é bom o suficiente para fazê-lo, pois é benevolente. Mas não o faz, pois não sabe quanto mal existe, e onde está todo o mal. Então Ele não é onisciente.

Se Deus for onisciente e perfeitamente bom, então sabe de todo o mal que existe e é benevolente o suficiente para mudá-lo. Mas isso elimina a possibilidade de ser onipotente, pois se o fosse erradicava o mal. E se Ele não pode erradicar o mal, então por que chamá-lo de Deus?”

Uma observação não pode deixar de ser feita aqui, o terceiro ponto no argumento de Epicuro parece ser o mais fraco, pois pressuporia um certo conhecimento da vontade de Deus (coisa que os teístas são ótimos em saber; tanto Craig como outros crentes afirmam com uma certa tranquilidade sentenças sobre a vontade de Deus, mesmo que como consequência da definição deste, que lhes permite, hipoteticamente, fazer tais afirmações). Craig até irá apelar para tal ponto, pois se Deus existisse, coisa que não se sabe, e fosse de acordo com a definição proposta no paradoxo (Onipotente, Onipresente e Benevolente), seria possível pensar que ele tivesse um propósito para não erradicar o mal, mesmo sabendo dele e sendo Benevolente. Mas somente a despeito de defender a ideia de um ente que não compreendemos para não perceber que isso se chocaria com a ideia que temos de Benevolente (ou perfeitamente bom). Vejamos, se sei que meu filho sofre de câncer, tenho poder para curá-lo e sou perfeitamente bom, por que não curaria? Mas deixemos essas analogias de lado, pois o texto se alonga e ainda não entramos na parte central.

Craig inicia em 1:01 min. (sempre em minutos e segundos) dizendo que o tema já foi amplamente discutido por filósofos. Apenas a fim de apurar melhor seu argumento, Craig poderia muito bem ter citado os tais filósofos e suas respectivas discussões, mesmo que rapidamente, pois não vejo na História da Filosofia essa apreensão tão grande pelo problema como ele mesmo afirma, a não ser nos medievais e filósofos cristãos (não seria um argumento de autoridade, mas reforçaria o seu e traria mais referências para o debate, mas isso não importa muito). Após isso, ele afirma, mas não categoricamente, que parecesse haver um genuíno progresso na discussão quando se faz a distinção entre o problema intelectual e o emocional a respeito da existência do mal. Cada um desses problemas é diferente e deveria ser tratado de modo diferente. Craig inicia a partir do problema intelectual a respeito do mal e do sofrimento no mundo (perceba-se que já em 1: 26 min. do vídeo, Craig começa a desviar-se do problema central levantado pelo ouvinte e do paradoxo propriamente dito). O que Craig faz é trazer o debate para o simples embate ideológico contra os ateus – ou neo-ateus, estou pouco me lixando para o título, mesmo que implique em uma diferença de atitude em relação a teístas – e ao fazer isso ele desvia o foco do problema central lançado por Epicuro para apenas fornecer munição argumentativa aos teístas que desejam vencer seus opositores em debate. Isso fica claro na frase “você precisa se perguntar: o ateu está...”. Isso é algo bastante presente nas discussões hodiernas e em ambos os lados (aqui estou tratando apenas do problema pertinente a teístas e ateus). Não é a busca pela solução de problemas (não que isso seja ideal em todas as áreas, mas nessa, em particular, grande revolução haveria se as soluções estivessem na mesa), mas argumentar mostrando negativamente que o opositor não é capaz de te vencer em debate, o que eu caracterizaria como um tipo de erística disfarçada. Algo deve ser notado em debates como esses, ganhar a platéia é essencial. É o que fica explícito quando ele simplesmente tenta mostrar que o ateu não consegue demonstrar a incompatibilidade entre a existência de Deus e a existência do sofrimento e do mal no mundo, mas ele mesmo não responde às conseqüências do paradoxo satisfatoriamente (veremos mais adiante a simples e hipotética resposta que ele dá, mas julga ser suficiente), a não ser para os crentes em Deus, pois afirmar um livre arbítrio dado por Deus não é só mudar de assunto (já pressupondo que Deus existe e nos concedeu esse livre arbítrio), mas tornar um paradoxo que “permite” a não aceitação da coexistência de Deus e do mal no mundo como resolvido pelas conseqüências da criação de um Deus que esse mesmo paradoxo tenta negar. O argumento seria o mesmo que o seguinte: “Ora, para A existir sendo ao mesmo tempo x, y e z, é necessário que B não exista. Ora, B existe, então é preciso que A não exista sendo ao mesmo tempo x, y e z”; e em resposta alguém dissesse: “Ora A existe sendo x, y e z ao mesmo tempo, ainda que exista B por que A possui C que permite a existência de B”. Seria acréscimo de termos e premissas ao problema inicial sem nenhuma justificativa lógica. A ideia seria enfraquecer o argumento assumindo aquilo que o argumento não pressupõe.

Em 1:39, Craig fala sobre “pressuposições ocultas”, por parte dos ateus, que revelariam essa suposta contradição (vejam, Craig julga ser necessário haver tais pressuposições ocultas para o argumento proceder, e as quais os ateus deveriam manifestar, mas ele mesmo faz pressuposições adicionais ao argumento julgando resolver o problema, por adição de termos e premissas que o argumento inicialmente nega). Mais uma vez a fuga do tema é direcionada para o embate ideológico contra ateus (devo lembrar que, a princípio, isso aqui não é uma defesa do discurso ateu ou neo-ateu, mas uma análise da argumentação de W. Craig). Quando ele afirma a suposta assunção de “pressuposições ocultas” que revelariam essa contradição em 1:39 min. por parte do ateu, fica a pergunta no ar: “que diacho é isso? Pressuposições ocultas?” Ora, o paradoxo de Epicuro não pretende nenhuma pressuposição oculta e nada mais além daquilo que foi estipulado nas premissas (Cf. Aristóteles Prim. An. 24b 19-21). Enquanto paradoxo, e partindo da sentença pressuposta a qual o gerou, os termos dados e dispostos adequadamente no silogismo geram uma conclusão cuja necessidade decorre das premissas e é explicitamente manifesta, de que é incompatível (lembremos, estando as premissas dispostas da maneira como foram e os termos dados) a existência de um A que possui ao mesmo tempo as propriedades x, y e z e a existência de um B, que na melhor das hipóteses permite a existência de apenas duas daquelas propriedades ao mesmo tempo (x, y e z). Ainda mais, dizer que Deus e o mal não são logicamente incompatíveis não torna a frase anterior verdadeira (de que seria necessário haver pressuposições ocultas e que estas seriam manifestas pelos ateus para tornar o argumento válido), nem mostra que Epicuro estava errado na construção, estrutura e na validade de seu argumento.

Analisemos a sentença de outro modo. Ela pode ser reduzida a um modo peculiar do tipo modus tollens. Primeiro reduzamos o argumento de sua forma hipotética construída por Epicuro para uma forma assertórica.

Segue o argumento: “Se Deus é onipotente, onipresente, e perfeitamente bom, então o mal não existe. Ora, o mal existe, então Deus não é onipotente, onipresente e perfeitamente bom”. Em modus tollens : “Se P → ⌐Q. Ora, Q, então ⌐P. O que Craig deveria ter feito era demonstrar que esse silogismo não procede, e que a sentença não implica em uma incompatibilidade dadas as premissas como foram estabelecidas. Mas ele não o faz. Não venha me dizer que era um debate contra neo-ateu, esse não é ponto. O ponto é o argumentar em favor de uma solução ou esclarecimento de um problema, mesmo que não se encontre uma ou não haja esclarecimento, e não apenas argumentar a fim de vencer o debate. Veja bem, terminar com uma pregação, como faz Craig, cujos argumentos necessitam da crença em cristo para encontrar suporte é um desespero argumentativo e a manifestação do apelo ao emocional para ganhar o debate. É a cegueira da razão diante de um problema cuja solução extrapolou as capacidades de análise do indivíduo (no caso, Craig, pois para o ateu não há a necessidade de defender uma compatibilidade entre Deus e o mal no mundo, dado que não há a crença em Deus).

Em 1:47, ele insiste nas “pressuposições ocultas”, mantendo sua fuga do problema central, só que agora jogando a “culpa” para o desconhecimento destas nas costas dos grandes filósofos. Ele não cita sequer um que tenha abordado o problema e falado de possíveis “pressuposições ocultas” consideradas insolúveis (mas isso não é importante para nosso argumento). O que fica tácito no modo de argumentar de Craig é um tipo de dialética da negação (se é que posso empregar o termo dialética em vez de retórica, no caso dele). Esse tipo de argumentação é bem presente em sites teístas, cujo pano de fundo é sempre a vitória no debate, e não uma argumentação direcionada para a solução ou esclarecimento de problemas (mesmo que esses não ocorram).

Em 2:08 vem seu primeiro argumento, e não é muito feliz: “Deus tem razões moralmente suficientes para permitir o mal no mundo”. Sinceramente, se você não vê um problema nessa afirmação, há algo de errado com você (mesmo que a afirmação seja assumida como hipotética). Alguns pontos devem ser ressaltados:

1. É fantástico como teólogos, teístas, cristãos e crentes de um modo geral atribuem predicados (e não vou dizer propriedades, mas também fazem isto) volitivos em relação a Deus. Sem entrar em discussão com a teologia, cujo método dogmático parte da aceitação da existência de Deus, deve-se estranhar esse tipo de predicação, uma vez que o sujeito que a recebe não se coloca de pronto para confirmá-la ou negá-la.

2. Mesmo se aceitássemos a existência de Deus, seu plano divino, a ideia de livre arbítrio concedida por Ele, eu te pergunto: você se contentaria com essa afirmação de Craig, mesmo sabendo que certamente Deus poderia mudar a realidade? (aos críticos de tabelinhas de termos, que penduram um dicionário do lado do PC, entendam o termo realidade no seu sentido amplo, e como a que nos cerca e da qual fazemos parte).

3. Essa afirmação só pode proceder de um silogismo hipotético, e não demonstra que o argumento de Epicuro estava errado na sua forma e validade (não está em questão a análise do valor de verdade das premissas, pois seria outra coisa dado o objeto de estudo ser Deus)

Por mais que Craig admita que essa premissa adicionada tenha o operador modal de possibilidade incidindo sobre sua verdade, esse mesmo operador inserido na premissa adicional não lhe permite inferir a incompatibilidade lógica estipulada no paradoxo de Epicuro.

Em 2:22 min. ele faz uma inversão de papéis. O paradoxo já está dado, o silogismo, dadas as premissas, mostrou a incompatibilidade de acordo com a definição assumida dos termos (sem análise do valor de verdade). Craig então, que havia afirmado que é possível provar que não há incompatibilidade entre Deus e o mal presente no mundo, joga a responsabilidade para o ateu, após inferir a premissa adicional que acabamos de ver. Na realidade, ele é que precisaria defender e explicar a possível premissa adicionada por ele, e provar que aquele predicado volitivo se aplica de fato a Deus, ou mesmo decorre de um silogismo hipotético. Após isso, mostrar que o argumento de Epicuro está errado. É fácil inverter o papel da prova para fugir do argumento central.

Em 2:30, Craig adorna sua falácia com uma suposta crítica aos ateus, e que demonstraria uma incapacidade destes, tudo em favor da vitória no debate. Em 2: 36 min., é fantástico como após não dizer nada de significativo para a resolução do problema Craig diz que o argumento é obviamente fracassado. Ao seguir sua análise em 3:04 min. Craig faz uma afirmação em forma de pergunta um tanto quanto perigosa pra ele: “como pode o ateu saber isso?”, referindo-se à impossibilidade de, se Deus existe, que ele permita o mal no mundo. Como pode Craig saber que, mesmo possivelmente, Deus tem razões morais suficientes para permitir o mal? (a condição de cognoscente necessária para o ateu nessa situação não é diferente para ele). Responder a essa dificuldade dizendo “talvez” em 3:13 min. é no mínimo um desrespeito à argumentação lógica. Se nem ele nem o ateu tem algo decisivo para dizer a respeito do problema (dado a pergunta perigosa citada acima) que ambos se silenciem.

Em 3: 19 inicia-se parte da pregação final de Craig, e começa com uma falácia: a introdução do livre arbítrio como explicação para o problema. Infelizmente nosso texto se alonga por demais, não há a possibilidade de abordar esse problema, mas fica ressaltado que incluir a noção de livre arbítrio para resolver o paradoxo gera uma falácia na reconstrução do argumento todo. Em 3: 27, dentro da pregação final, manifesta-se mais uma vez a dialética (ou retórica) negativa de Craig, quando esse faz apelos sucessivos a hipóteses considerando-as provas conclusivas de um silogismo demonstrativo. Hipótese não é demonstração (o que vale para o argumento de Epicuro, porém, sua validade e estrutura formal não foi refutada por Craig, e a conclusão procede das premissas). Nota-se também nesse momento, mesmo que rapidamente, a introdução do argumento de Kant (Crit. Razão Prática) para o Deus que se esconde em favor do livre arbítrio (analisaremos em outro post). Em 3: 59 min. Craig diz “pura especulação”. Para não me alongar, o que afinal faz Craig? Essa frase não se aplicaria a ele também? Em 4:15 min. ele insiste em frases que colapsam seus próprios argumentos, e somente em 4:26 ele inicia a análise do problema do ponto de vista emocional, que não é filosófico para a maioria das pessoas, no que concordo tranquilamente, mas ainda assim existem implicações diretas nas crenças religiosas. Em 4:46 min. nota-se que Craig defende claramente a ideia de que o Deus cristão não é impessoal ou indiferente (e aqui o apelo ao emocional do público fica mais explicito, manifestando mais uma vez a fuga do problema e a necessidade de apenas vencer o debate ideológico), mas é ainda um Deus que intervém na história humana.

Por fim, em 5:00 min., a pregação aumenta, e fica difícil dar continuidade à analise, dadas as frases emitidas por Craig, que, aliás, defende um Deus que invés de eliminar o sofrimento do mundo, se compadece desse sofrendo junto e matando seu filho para que por livre arbítrio o reconheçamos como salvador (parece um teatro mágico, mas não chega perto de um drama shakespeariano). Observe-se que, e sem entrar em discussão histórica profunda, se remetermos o próprio Craig às frases de 4:15 min., quais são as provas confiáveis para isso que ele afirma sobre cristo no final de sua pregação? Ele termina fazendo apologia a um Deus que convida ao sofrimento em detrimento dessa vida e em favor de uma vida eterna que ele não sabe se existe, mas apenas acredita. E assim se faz de um jogo de palavras o meio eficaz para se ganhar um debate, não importa sobre o que está se debatendo, o que importa é vencer. A verdade?! Ah...! Essa é outra história.

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Thiago Oliveira

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